A40/1L Guardian
Meu legado é uma dica
"Quando a praga surgiu era uma grande novidade, e portanto muito cara, eram poucos os que tinham acesso e ainda menos os que se dispunham a ela. Estes poucos eram vistos com estranheza, mas depois vieram outros, e outros... Meu Deus. A nova onda acabou se tornando uma febre. Foi como ocorreu no passado, quando surgiram os celulares.
As pessoas aos poucos foram aderindo, ou melhor, na minha opinião se 'acostumando' com aquilo, da mesma forma que acabaram se 'acostumando' e aceitando a fome no mundo, a criminalidade e até mesmo a morte. Se está lendo esta carta você deve me entender. E como eu desejo que sim...
Enfim, foi cada vez mais fácil trocar o sangue, a carne e os ossos pelos fios, baterias e articulações hidráulicas. Para aqueles malditos o frio do ferro tocando a pele o tempo todo era compensado pelas vantagens recebidas em troca. Alguns até achavam que daquele jeito o mundo estava ficando melhor. Só para exemplificar, um funcionário com pernas biônicas, correndo pela cidade durante a noite recolhia para uma empresa sanitária muito mais lixo que 3 funcionários comuns juntos, impressionante não é mesmo!? As empresas não demoraram para perceber isso, até pagavam para que seus funcionários recebessem "upgrades", tudo por lucro. Isso originou uma crise, as diferenças sociais se intensificaram, o que fez com que mais gente, desempregada e desesperada, buscasse loucamente as vantagens oferecidas pela praga.
Democratizada a invenção, de origem militar, assim como a internet, a tecnologia chegou a todos países, que pesquisaram e se armaram cada vez mais, impressionados com o poder de seus inventos. Estourou então a guerra-fria do século XXIII, a mais "gelada" de todas. Nisso, quando 4/5 da população mundial já era usuária da praga, um ataque de mercenários norte-americanos à um laboratório na china liberou micro robôs invasores - a história não está livre de clichês - que sem missão alguma, atacaram todo e qualquer equipamento tecnológico que encontraram. Para piorar tudo, a ação lenta deles, ainda em fase de aprimoramento, permitiu que se espalhassem pelo mundo todo antes de serem percebidos. Não houve tempo para elaborar-mos bloqueios ou quarentenas.
O mundo foi tomado, uma carnificina. Os que tinham órgãos biônicos perdiam o controle dos mesmos. Vi na rua, um homem correr gritando até não suportar mais e arrancar o próprio braço. Todas as vantagens agora pareciam cobrar o seu preço. Os que não acreditavam em nada se suicidavam, muitas vezes em massa, os crentes seguiam ainda mais suas religiões, que afirmavam ter chegado a hora do juízo final. A sociedade faliu, todas as inter-relações indispensáveis à vida nas cidades foram cortadas e o caos se expandiu.
Mas surgiu a RENOVAÇÃO, o 1/5 puro da população se uniu em grupos pelo mundo, formando um governo só, em busca da mera sobrevivência. Sobrevivemos por anos, por incrível que pareça, usando o velho socialismo, que depois de nunca ter funcionado bem, deu conta do recado.
Mas a mente humana não sabe lidar bem com a igualdade. Anos depois alguém descobriu que os micro mecanismos causadores do cataclismo haviam morrido. Eu nunca pensei que desejaria tanto que eles ainda vivessem... Lembro-me de estar trabalhando quando vi aqueles homens chegando, eu não conseguia acreditar, não podia, depois de tudo que vi acontecer. Homens de algum exército extremista, usando novamente toda parafernalha tecnológica de outrora. A praga havia voltado. A ambição havia vencido.
Fomos escravos nas cidades, trabalhando para eles poderem RECONSTRUIR O MUNDO, como diziam. Isso até não precisarem mais de nós, aí começaram a matança, o novo holocausto. Consegui fugir, vivi como um eremita por meses, espiando as cidades, vendo eles numa insensibilidade quase impossível realizar execuções no meio das ruas.
Mas ontem a tardinha, antes que eu achasse essa cabana, vi um deles caminhando pela floresta, era muito magro e tinha um cajado e um saiote que emanavam uma luz mais forte que a luz do sol, que penetrava naquela hora pelas frestas na copa das árvores.
Enfim... Só escrevi tudo isso na esperança de alguém encontrar, para que alguém lesse esta carta e tivesse alguma consideração por mim. Contudo, neste 21 de Junho de 2259 vou ver meu último pôr do sol e finalmente descansar. Não dei a eles o gosto de matar mais um.
Se você for um deles, vá para o inferno, mas se não for, não me veja como um covarde e enterre no bosque o cadáver que você viu ao entrar pela porta e nunca, mas nunca, mecha nem confie na tecnologia. Ela é a praga. Comece uma nova era destruindo este computador. Obrigado!"
Tiarles M. Rodeghiero
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